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O Chão da Terra – capítulo V

Por Serta
14/04/2020 | 05h:45

MÁRCIA

“A construção do projeto de vida é a instância final de um projeto de desenvolvimento pessoal e social. Quando o adolescente se revela preparado para iniciar essa construção, isso significa que formou sua identidade, compartilhou-a com um grupo e se tornou capaz de comunicar sonhos, desejos, planos e metas, podendo ingressar numa nova etapa de vida”. Margarida Serrão e Maria Clarice Balleiro/ Aprendendo a Ser e Conviver – São Paulo: FTD, 1999.

“Sou Márcia, uma pessoa alegre e divertida. Adoro as coisas da minha terra, e de pessoas que a valorizam. Não gosto de pessimistas e sem determinação. Sonho em continuar atuando, e mostrar a arte e a cultura do meu município.”

O tempo distanciou os jovens do Chão de Terra, mesmo que ainda residindo na mesma cidade. Cada um buscou os espaços onde realizar seus ideais.

Alguns foram trabalhar em campos fora do teatro. Uns se interessaram pelo trabalho de coordenação de projetos ou na parte burocrática de instituições. Outros tomaram gosto maior por dirigir grupos de teatro. Foi o caso de Márcia, que se tornou monitora de teatro desde os seus dezesseis anos, quando iniciou com o projeto Teatro na Escola. Esta primeira experiência foi uma prova de resistência aos preconceitos dos jovens de mesma idade, com a manifestação da cultura popular. Márcia coordenava a primeira turma do grupo de teatro Agora é a Hora, de Glória do Goitá. Para os jovens do grupo, o maracatu, por exemplo, era “coisa de macumba”, ou “de gente velha”, o que veio a ser desmistificado durante as etapas de formação.

Nascida e criada na zona rural de Glória do Goitá, Márcia é a sétima entre os dez filhos de Seu Ismael e Dona Luiza. Para educar-se na escola, percorria cerca de três quilômetros sob o excessivo sol presente em quase toda época do ano. Caminhos empoeirados, enfrentados com dureza, motivados pelo desejo da menina vencer na vida. A dúvida era se o caminho de sua casa, no sítio Queceque, até a escola, seria mesmo aquele que garantisse o futuro esperado.
Sua sabedoria foi a arma de combate a exclusão. Constava em observar, colocar-se no lugar do outro. Assim errava menos, evitava repetir equívocos. Desse modo conseguiu a personagem Catirina, papel para o qual todo o grupo fizera testes.

Esperou uma a uma fazer sua interpretação, e observava a reação dos diretores Eugênio e Cássia. Procurava captar o que soava de positivo e negativo. Assim ficou mais fácil criar a personagem que valorizava a cultura popular, intensificava alegria, originalidade, poesia e crença.

Interpretar uma personagem pareceu ser fácil. O difícil foi colocar a si própria em cena. Falar sobre si era como dar liberdade a uma personagem que nem conhecia tão bem, ela mesma. Um direito que foi aprisionado por Márcia, pois imaginava que falar sobre si, de maneira pessoal, talvez não atendesse o querer dos demais.

Com o entendimento da proposta do “Quem sou eu?”, Márcia fez sua descrição. Esta narrativa trazia elementos de sua realidade mais particular. Assim escreveu:

“Sempre sorrindo e às vezes calada, tento fazer de cada instante o melhor momento de minha vida. Um dia, uma amiga me falou que tudo o que conquistei ninguém irá tomar. A partir desse momento passei a conhecer meu verdadeiro eu, e ver que nada na vida é por acaso. Passei a ser Márcia, que não é qualquer uma das Márcias. Mas sim, Márcia Aurélia Nazário, uma pessoa forte e batalhadora, que luta pelos seus objetivos e ver uma sociedade mais digna.”

Esta fala toca nos tempos de preconceitos dos colegas de escola, por morar na zona rural. Márcia evitava revelar suas origens, já que isso lhe trazia aspectos de incapacidade. O que tinha de diferente em não morar na cidade? Pois é, ela também se perguntava, já que, ao contrário do que soava, suas intervenções na escola eram comuns aos que moravam em qualquer outro lugar.

Sentiu a necessidade de que, para aproveitar melhor as oportunidades, precisava morar mais próximo da escola. Seus irmãos também comungavam da ideia. Menos o pai, que jamais deixaria o lugar onde existiu, desde moço.
Foi então que Márcia arquitetou um plano: escreveu uma carta anônima ameaçando o pai de morte. Ora, se Seu Ismael estivesse sob o alvo de alguém, era natural que procurasse um local diferente para morar. E esse local tinha que ser na cidade.

O plano foi interrompido por bandidos. A casa foi invadida por assaltantes que fizeram Seu Ismael de refém. Ameaçaram-no de morte. Levaram o pouco dinheiro que tinham. Em seguida fugiram sem deixar rastros. O que deixaram foi o trauma na família, que passou a viver assustada no local, que se tornara inseguro.
Uma onda de furtos se iniciou nas casas da comunidade. O povo não tinha como reagir. Migraram para o centro da cidade onde moravam, lugar de maior segurança. Para Márcia, uma vitória. Para seu Ismael, uma decisão dolorosa ceder seu espaço por razão das circunstâncias.

Residindo próximo ao centro, Márcia começou a se envolver nas coisas que apareciam como oportunidade para o seu crescimento. Foi quando conheceu o SERTA, através de uma oficina de teatro que fez, no segundo festival de arte e cultura. Essa participação despertou o interesse pelo teatro. E, assim, tempos mais tarde, garantiu sua vaga no curso de teatro da instituição, que viria a ser o grupo de teatro Chão da Terra.

Para crescer e subir as escadas para grandes realizações o grupo avaliava sempre sua dinâmica de atuação, estes eram momentos de refletir sobre as experiências e os aprendizados vividos, os pontos negativos e positivos, e o que precisava ser ainda melhorado na encenação da peça e nas relações interpessoais. Os aprendizados, as mudanças e a visão de grupo eram revisitados constantemente, esta era parte da metodologia. Para cada ação planejada e executada, uma avaliação cabia a ser realizada.

Toda vivência no teatro fez com que despertasse em Márcia, o desejo em compartilhar seus saberes. Esperava que outras pessoas experimentassem desta experiência educativa, através da arte. O que foi possível através do projeto Sanfona Cultural, que se tornou uma das ações prioritárias da Geração Futuro.

O projeto ganhou reconhecimento como Ponto de Cultura, em 2009. Os três eixos temáticos do Sanfona Cultural possuíam objetivos que se concretizaram no sonho de toda equipe: constituir um movimento artístico cultural capaz de influenciar nas políticas públicas dos municípios. O projeto realizou também o registro da memória dos mestres populares dos municípios envolvidos. Responsabilidades e desafios para uma equipe totalmente jovem, de gerir, coordenar, e mostrar resultados.

Mais uma vez, com a parceria artístico-pedagógico do CRIA, foi realizada a primeira mostra de arte-educação Ouve a Voz da Arte, promovida pela Geração Futuro, em 2008. Para este evento, foram criados cinco novos grupos de teatro. Márcia dirigiu o espetáculo Um assunto que não é brincadeira, e fundou o grupo Baluarte da Alegria, de Chã de Alegria. A peça educativa retratava a fantasia, o imaginário da infância e o potencial da criança. A importância de brincar e de ter tempo de ser criança, respeitando suas fases de desenvolvimento.

O grupo Tubira-bá, de Pombos, foi criado por Adriana, que encenou a peça A água o rio: tudo está por um fio. O espetáculo falava da poluição dos rios. Relembrava a harmonia que os índios têm com a natureza, e questionava se seria mesmo possível viver em sintonia com a mesma, sem precisar destruí-la. Em Lagoa de Itaenga o grupo Zum, Zum, Zum Danado, com a peça “Qual sua história, Maria? Qual seu sonho, José?, dramatizava situações de invisibilização das pessoas e foi organizado e dirigido por mim. Abordávamos temáticas como meio ambiente, desenvolvimento sustentável, educação e participação social.

Oh, Glória! Que cultura rica, peça do grupo Agora é a Hora, de Glória do Goitá, que teve a orientação de Joselma Vicente, fruto da primeira turma de jovens do grupo. A peça revelava as origens do município. Criava questionamentos sobre “Que cidade queremos ter?”. Por fim, o grupo Quero Mais, de Feira Nova, com a peça De quem é a culpa?, dirigido por Michel Lacerda. O espetáculo discutia os motivos que causaram o desgaste do ensino, e convidam o público a refletir sobre a educação e seus espaços de atuação.

Cerca de sessenta jovens atores e atrizes desta região de Pernambuco circularam com os seus espetáculos em escolas de comunidades rurais, somando mais de cinquenta apresentações, formando um público total de quase doze mil pessoas. As montagens circularam por dois anos, com apresentações constantes em festivais de teatro, eventos sobre educação, palestras, congressos, escolas e universidades.

Novamente os jovens que foram do Chão da Terra encontraram-se. Depois de anos afastados uns dos outros e numa caminhada estacionada, outra vez manteram contato com o CRIA, Eugênio, Cássia, Maria Eugênia, nas novas peças que voltaram a construir, formando mais gente, na Geração Futuro.

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