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O Chão da Terra – capítulo IV

Por Serta
12/04/2020 | 05h:32
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ADRIANA

Nada pode deter a força de uma ideia cujo tempo chegou” Victor Marie Hugo

“Alegre e descontraída, sou demais. Gosto de fazer as pessoas sorrirem com meu bom humor. Imagino que pertenço a um mundo diferente, onde ninguém é triste. Faço o certo: saio, brinco, curto a vida numa boa. Tenho minhas falhas, mas sei reconhecer quando estou errada. Descontraída como palhaço, estou sempre em gargalhadas, e nunca abaixo a cabeça para os obstáculos da vida, seguindo em frente firme e forte.”

– Aqui é o negócio do teatro? É que eu passei na seleção. Ligaram pra minha vizinha pedindo pra avisar que eu tinha passado.

– Não, menina. Foi engano. A seleção está acontecendo agora. Pode entrar quando se sentir à vontade.

A conversa foi entre Adriana e Eugênio, que orientava a seleção para o grupo de teatro. Depois de duas tentativas de ingressar na formação do SERTA, ela cometeu sua última investida. Desta vez parece que o destino reservou a vaga ao que sempre quis fazer desde pequena: teatro. Adriana protagoniza a história de quem acredita em desafios como principal meio de motivação. É uma jovem risonha, que não se priva de mostrar os dentes para sorrir. Sua realização em compor o grupo Chão da Terra compensou o tempo em que não foi oportunizada na escola.

Nasceu no Sítio Marrecos, em seguida passou a morar na zona urbana de Glória do Goitá. Um município que se destaca pelos bonecos oriundos do mulungu, que obtém vida e história através do improviso dos mestres mamulengueiros Zé de Vina e Zé Lopes. A cidade possui pouco mais de 28mil habitantes (IBGE 2010), e quase duzentos anos de ocupação.

O nome atribuído a cidade lembra a padroeira, Nossa Senhora da Glória e, também, ao Rio Goitá, que traça o município. As moradas são comuns para todos. Pequenas e amontoadas, erguidas em alvenaria. Quase todas com grades de proteção. As praças espaçosas dividem pequenas comunidades urbanas, sendo pouco mais de quarenta por cento (IBGE 2010), do total. Os botecos contornam em circulo, a maior das praças, localizada no centro da cidade e tendo como destaque a matriz de Nossa Senhora da Glória. Numa estreita entrada ali perto, um pequeno comércio livre. O dia transcorre numa mistura de gente. Cada qual com seus afazeres diários. Os caixas de som da bicicleta anunciam a promoção do comércio. Sinetas de picolé na rua. A “Ave Maria” toca no alto da igreja. O ruído vai diminuindo, à medida que o sol se esconde nos coqueirais da cidade.

Sim, Adriana se saiu bem na seleção. Mesmo querendo precipitar o resultado, conseguiu ficar entre os selecionados, e passou a conviver com os novos companheiros das manhãs de curso. A gargalhada fácil era tão presente quanto sua espontaneidade em dizer o que pensava e sentia. O que provocou relacionamentos intensos e tumultuosos. Por diversas vezes houve discussões no grupo. Mas tudo se resolvia, ou tinha que ser resolvido, antes de entrar em cena. E, quando percebiam que faltavam as forças para se energizarem, rezavam o Pai Nosso, em círculo, todos juntos, de olhos fechados. A oração era sempre bem vinda. Em seguida, eles davam um beijo no rosto um do outro, como demonstração de afeto. Assim era o clima que pairava no grupo Chão da Terra.

Quando assunto é a escola, Adriana relembra com risos e ironia. Fim de ano se aproximava. A professora preparava uma apresentação natalina para os pais dos alunos. Olhou para toda turma. Adriana estava sentada bem perto de seu nariz. Mesmo chamando atenção pelos cabelos volumosos e pelas roupas desbotadas, nesta hora, a professora fazia de conta que ali não existia ninguém. Adriana notou que a professora queria escolher uma menina de cabelo liso e bem penteado, roupas boas, e que a família tivesse um rendimento econômico atraente.

Escolheu uma destas para protagonizar o papel de Maria, mãe de Jesus Cristo. Os ensaios aconteciam sempre no final da aula. Adriana ficava na plateia, observando as amigas “passarem o texto”. De tanto ver as cenas, acabou aprendendo tudo que acontecia do começo ao fim. No dia da apresentação, a menina que representaria a personagem Maria, adoeceu e a professora ficou desesperada, buscando soluções para resolver o problema. Quem se ofereceu? Adriana: – Eu, professora. Eu faço a parte dela. Eu sei o texto todinho. Quer que eu diga para a senhora?

“Honra imensa veio a mim;
Com a missão que cumpro agora.
Para formar o presépio;
Eu trago Nossa “Senhora”.

Recitou alto. Os aplausos vieram em volume maior. Adriana percebia sua capacidade, assim como entendia que o nome dado ao ato da professora, era preconceito. Não se culpava por ser do jeito que era. Também não acusava as professoras. Mas a sociedade. Entendia que tudo fazia parte de um sistema inflexível. O sentimento de exclusão não gerou desânimo nem revolta. Distinguia a situação como um desafio que tinha que enfrentar e sair vitoriosa.

Nas aulas da catequese, participou de outro Auto de Natal. Os papéis eram distribuídos por ordem de “insignificância”: dos bichos aos humanos. Um por um, a professora foi nomeando os alunos. Todos os papéis de bichos já haviam sido distribuídos. Os masculinos também. Desanimada, Adriana imaginava que estaria fora da peça. Até que se surpreende com a convocação da professora, ao escolhê-la para a interpretação de Nossa Senhora. Não entendeu o porquê da escolha, já que o ato seguia os paradigmas de intuição. Os segundos de fala da personagem Maria a deixou feliz, fazendo acreditar que a situação de exclusão não era totalizante.

Nunca teve bonecas na infância. Também nunca sentiu falta. As folhas secas do mamão substituíam o brinquedo. Mais tarde, na criação dos personagens para o espetáculo “Nossa Gente, Nossa História”, não só brincou como também deu vida a boneca Miroca. Inspiração da oficina de manipulação de bonecos com o mestre mamulengueiro Zé Lopes.

No dia da oficina, parte do grupo escapuliu para assistir ao jogo do Brasil na copa do mundo. Enquanto isso, Adriana se encantava com as histórias dos bonecos e as loas entoadas pelo mestre.

“Boa noite, meu povo todo;
Que eu cheguei dando louvor;
Nesse campo de fulô;
Louvado seja: Meu Deus!
Se houver outro como eu;
Que eu acho muito difícil;
Que preste melhor serviço;
Eu quero deixar-me disso;
Não quero ser mais: Mateu!”

Sua aparição em cena foi marcante, como também nas publicações que foram feitas sobre o grupo. Relatórios institucionais, livros, catálogos compõem o acervo do grupo e o seu também. De tantas histórias já vividas e contadas, viu uma delas ser publicada no livro: “Juventudes Rurais: Cultura e Desenvolvimento”, de Gustavo Stephan e Maurício Castro. Ela conta sobre como foi uma de suas experiências de arte-educação, na cidade de São Sebastião do Umbuzeiro, no sertão da Paraíba. Uma história que envolveu diversos estados brasileiros.
Tudo começa quando ela e Márcia, também integrante do Chão da Terra, viajaram juntas para difundir a metodologia do teatro com crianças desta cidade. Um desafio e tanto ter que fazer teatro com este público, já que nunca haviam feito.

Ainda no início das atividades tiveram que retornar a Pernambuco. Foram convocadas a repassarem o ensaio da peça junto aos demais integrantes do Chão da Terra, cuja apresentação seria realizada em Gramado, no Rio Grande do Sul, sendo uma das atrações da I Jornada Nacional do Jovem Rural, realizada em setembro de 2005.

Passeando pelo pátio de exposição do evento em Gramado, Adriana se deparou com o baú da leitura, que pertencia a uma das instituições sociais envolvidas. Um livro ilustrado com duas bonecas, que pareciam mamulengos, chamou a sua atenção. Folheou o livro, mas não leu. Dois dias depois, Márcia andava pelo mesmo local e, curiosamente, pegou o livro visto por Adriana. A diferença é que ela reconheceu logo nas primeiras páginas, a imagem ilustrada da igreja e praça, com o nome da cidade de São Sebastião do Umbuzeiro, onde estavam trabalhando.

Apressou-se ao encontro de Adriana para compartilhar a surpresa. As duas leram em minutos todo o livro Sebastião e Severina, escrito e ilustrado por André Neves, do Rio Grande do Sul, publicado por uma editora de São Paulo. Esse livro se encaixava perfeitamente na proposta que elas pensavam: retratar um ato local que valorizasse a cultura popular. O livro conta a história do pastoril, e da tradicional festa religiosa de São Sebastião, através de duas comadres rendeiras que dão nome à obra.

Concluído o evento, retornaram à cidade paraibana com o livro em mãos, que foi adaptado e encenado por elas. Em pouco mais de quatro meses, a peça estava pronta. Professores, Prefeito e a comunidade estavam presentes no dia da estreia, no município. Enquanto Adriana discursava sobre a peça e o grupo, Márcia se aproximou timidamente e disse a ela que Sebastiana existia, e se encontrava na plateia. Adriana não acreditou, já que as pesquisas realizadas por elas não davam rastros de que aquelas personagens fossem reais. Márcia insistiu novamente e Adriana olhou firme nos olhos da amiga, que lacrimejavam. Foi quando anunciou: “Minha gente, Márcia está me dizendo que Dona Sebastiana existe, e está aqui”.

De longe, o professor historiador, que se interessou pelo trabalho das meninas, acenou: “Adriana, ó ela aqui, ó!”. Levantou-se da cadeira uma senhora velha, de baixa estatura e magra. Caminhou vagarosamente até o palco, disse: “Existe minha filha. Sou eu. Estou aqui.”. Trêmula, abraçou e agradeceu as meninas por terem retratado sua história de vida, no palco.

Nos bastidores, Dona Sebastiana revelou que a história era real. Mas que, na verdade, o nome da personagem Severina é Auxiliadora, mãe do autor, que faleceu enquanto o filho escrevia a obra. O final da história, onde as rendeiras morrem naufragadas em um barco, também foi modificado por Neves.

Depois do espetáculo, o livro passou a ser disputado entre os moradores da cidade. Passava de mão em mão, como uma biblioteca ambulante. Além de o livro ter criado vida, também se multiplicava a metodologia do teatro de mobilização. Outra semente havia sido plantada.

Com o trabalho concluído, as meninas voltaram para as suas casas. Já tinham viajado por diversos municípios do sertão pernambucano, ministrando, junta a outros integrantes do Chão da Terra, oficinas de arte-educação para professores e gestores da educação. A cada desafio que aparecia mais motivações sentiam. Adriana tinha muita energia e muito a aprender. O fato de ser uma jovem pobre, nascida numa cidade pequena do interior, que não enxergava um futuro a sua vista, desenvolver trabalho em outro estado, fazer transformações com jovens, crianças e professores, era a dose de motivação necessária para entender que sonhos ambiciosos poderiam ser possíveis.

Com toda esta efervescência acontecendo, chegou o momento de Adriana refletir sobre seu trabalho, e se concentrar na vida profissional. Seguiu o caminho que considerou mais óbvio: sua qualificação nos estudos. Queria fazer uma faculdade, entretanto, ainda tinha dúvidas quanto à escolha do curso. Após tentativas frustrantes de conseguir aprovação em universidade pública, optou por turismo numa faculdade privada. Efetuou a matrícula com um empréstimo que fez. Márcia foi convencida a ir junto à aventura. Sem renda alguma, passaram o semestre inteiro sem sequer quitar um boleto da mensalidade. No terceiro semestre, foi contemplada com uma bolsa parcial do SERTA, através do Projeto Universitário, financiado pela Fundação Kellogg.

Para completar o orçamento, assumiu por seis meses a função de arte-educadora de um projeto de arte. Este projeto foi elaborado por alguns integrantes do Chão da Terra, apresentado a assistência social de Lagoa de Itaenga, e executado pela própria equipe, em 2006. O projeto visava à erradicação do trabalho infantil, oferecendo oficinas de arte, dentre elas, o teatro.

A partir dessa atividade coletiva, a equipe teve grande entusiasmo. Queriam se organizar enquanto núcleo de arte-educadores populares do Chão da Terra. O momento era aquele, e não podia ser adiado. Ninguém podia deter a força ousada dos jovens caboclinhos, os chamava Maria Eugênia. Estavam confiantes de que, juntos, podiam amadurecer a proposta pedagógica do teatro, e que esta fosse consolidada em uma organização social.

Neste período surgiu o CIP – Conjunto Integrado de Projetos -, na Bacia do Goitá. O CIP é uma rede que integra diversas instituições sociais da região, apoiada pela Fundação Kellogg. Foram identificadas as organizações que integrariam esse grupo e, em seguida, foi proposto a cada uma delas, que elaborassem um projeto de acordo com as temáticas de: arte e cultura; gênero; juventudes; comunicação; direito e cidadania; educação e esporte.

Quem ficou com a temática de arte e cultura foi a Geração Futuro, uma ONG que desenvolvia atividades na área da cultura, com crianças e adolescentes de Pombos, onde possui sede. Foi constituída no ano de 2005, por quatro jovens que estudaram no SERTA.

Sabendo da atuação dos arte-educadores do Chão da Terra, a diretoria da Geração Futuro convidou o grupo para participar da construção do projeto de arte, a ser apresentado pelo CIP. Com a união dos saberes tornava-se possível fortalecer a instituição, e o movimento de arte e cultura para o desenvolvimento do território.

O projeto, intitulado Sanfona Cultural, foi escrito de acordo com os desejos da equipe, dividindo-se em três eixos de atuação: formação de agentes culturais, através do teatro; pesquisa e registro dos mestres de saberes, e fortalecimento dos grupos culturais. Com a aprovação do projeto, os arte-educadores do Chão da Terra, dentre os quais estavam Márcia e Adriana, passaram a integrar o núcleo de colaboradores da Geração Futuro.

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